domingo, 16 de março de 2008

3 Gotas de Floral

GOTA I

Acordo sem perceber ao certo onde estou. Mas sim, é minha cama, o quarto de sempre e as mesmas lembranças, só um pouco mais gordas. Lembro de meu esquecido sonho.

Menina que me procurou para um fim, agora inicia algo que tento entender. Procurou-me com sangue escorrido, cabelos melados e a palavra triste de quem não sabe o que fez.

Ah, o que fizestes Cassandra?! Poderia ter sido diferente, ter dito um olá e depois ganhar um beijo saudoso como nos velhos tempos.

O que dizer-lhe se tão pouco sobrou-me no coração a não ser dor e saudades? Se soubestes o que veio depois da nossa pequena idade e pequenos beijos….

…o mundo se desvirtuou, cresceu aos olhos que nada estavam acostumados a enxergar. Ah, Cassandra, tivemos tanto em tão pouco tempo. Poderíamos dividir nossa felicidade em 3, 6, 12. Ou apenas em 7, pois 7 foram as vezes que a vida nos uniu.

Rezei por anos, tentando resgatar algo que pudesse renovar minhas preces e fé inabalável. Mas nada. Depois de ti, Milenas, Patrícias, Marianas e algumas Andréas. Mas nenhuma Cassandra. Fostes única. E de tão única, ficou rara, sumiu e nunca mais voltou. E continuará assim. A não ser em meus sonhos, se estou certo.

Prefiro teu velho sorriso a estes olhos tristes e envergados que agora encaro. Gosto mais da tua cabeça pensante que teu cérebro esvoaçante. Prefiro você viva, presente, aqui onde poderia te ter. Pois assim, continuaria como era, apenas uma lembrança de algo que ficou marcado nas paredes da escola, nas árvores da cidade, nos cadernos que queimei.

Porém, minha mente, esta não queimou, não se acabou, vibra tanto quanto as camas que nos encontramos. Ah, Cassandra….

Por onde andam os anjos que seguram em minhas mãos?
Ou as santas que deixam o rastro de seus perfumes?

Ah, daqui onde estou só posso usar a mente
Mas eu sei que em outro lugar também devo estar
Num coração ou na mente doente
Daquelas que já me amaram e deixaram…

Quanto ardor…
Por algo tão único e individual quanto meu princípio inteligente
Um fluído de ruídos
Moléculas adestradas sob o pensamento

Penso, mas de nada adianta
Me cansa…

Peço que deixe-me para sempre Cassandra, não volte mais aos meus sonhos. Eles são meus, nada seus. Deixe-me nos paraísos irreais, onde o Sol não sabe o que é a noite e a Lua tão pouco espera a escuridão para brilhar. Meus sonhos são apenas o que me resta.

Quando deito sobre o travesseiro úmido de lágrimas sinto a gravidade me puxar para algo mais limpo e claro. Porém, as chagas da minha consciência tragam a paz que já não existe.

Sabe, tudo isso daria uma boa conversa de fim de tarde contigo. Eu contaria tudo o que fiz até hoje. Explicaria um pouco sobre os livros que li, sobre as drogas que tomei e que já não me trazem a ilusão de antes. Diria o quanto te amei e o quanto procurei ingerir a gosma que nos atrapalhou e distanciou.

Sim, seu destino seria o culpado por te levar. Mas por que então não voltastes com tuas pernas? A quem te acorrentastes? Seus pés eram mais livres do que imaginei.

Já basta a receita de peru que nunca deu certo no meu fogão e as fotos que eu sempre imagino terem sumido. E o teu perfume que jurei ter esquecido…

Peço-lhe mais uma vez, deixe meus sonhos apenas para mim. Já foram teus, mas agora não mais.
Saiba: a cidade, a família, os amigos, os esquecidos e os nunca conhecidos sentirão a tua falta. Saberás o quanto, no exato minuto em que lavares teu rosto molhado de vermelho. Tire estas vestes que encapuzam teu sonhar. Sabes mais do que eu sobre a vida eterna. E agora, jogada neste fluído que te esmaga, vem me procurar…

Detestável. Gerastes uma instabilidade mental que arruaçou meu bem-estar, meu emprego de segunda e meu rejuvenescimento à base de olhares bêbados. Ah, e o autógrafo do Mick Jagger, que eu não esqueço!

Então Cassandra, por que voltastes a meus sonhos?! Já tomo remédios demais para dormir e constantemente 3 gostas de Floral. Deixe minha sintonia aliviar os medos que corrompem meu ser, por favor!

Estes pensamentos já parecem ser um novo sonho contigo. Pare!

Quando meus olhos despertarem para a vida
Deste sonho irei acordar
Vou largar tudo e mais um pouco
Deixarei minhas vestes
Minha carne à terra

E assim, se estiveres
Junto a mim
Voaremos sob o oceano
Em busca de mais um ano

Chamam-me de louco
Mas estou mais para um porco
De paladares divididos entre sal e açúcar
O doce e salgado da vida
Mas onde está o azedo?

Em meu coração,
Azedume da dor
Profundo fã do amor

Morre o homem que nunca nasceu.

“Triiiiiiiiiiim. Triiiiiiiiiiiim!”

Catzo.

- Olá.
- Podemos conversar?
- Sim, claro.
- Conte-me…


GOTA II


- Foi assim e pronto. Não quero repetir tudo de novo, mas para um oficial eu conto os detalhes novamente...

...Sexta-feira nublada, e você sabe bem como são esses dias em Sampa. Tudo começa a acontecer lá pelas 17hrs. Tem gente que até se esconde pra evitar maiores confusões. Mas enfim, nem sempre dá pra se isolar e meditar sobre o que o fim de semana irá trazer. Por isso, eu fiquei ali no bar, como sempre, esperando a hora de acabar meu turno.

Já faz - ou fazia - 3 anos que eu trabalho no Alvis Pub e o pouco que ganho paga meu aluguel. Nada promissor. O que me segurou lá tanto tempo foram as pessoas que conheci a cada dia. Namorei 3 garçonetes, fiz 4 amigos, ganhei 7 bolões de futebol e 1 autógrafo do Mick Jagger (sim o cara apareceu lá uma vez e não é mentira, juro). Um bom lugar para estar quando tempo é o que se tem nas mãos.

Hoje, o tic-tac não tardou e quando eram exatas 17:25 hrs entrou pela porta do estabelecimento uma mulher. Jeans, camiseta branca, cabelos compridos escuros. Usava óculos, então seus belos olhos eu não vi. Alguns clientes focaram naquele rabo novo que entrava e outros nem notaram a presença da moça. Porém, notada ou não, a senhorita tirou da bolsa uma arma e estourou os miolos ali mesmo.

Quando vi a arma inicialmente pensei: “bom, com meus 27 anos vou pro beleléu, é a sina dos 27”. Mas não, a arma mirou e atingiu a própria atiradora. Teve sangue pra todo lado, sem falar daquelas coisas brancas que voaram no espelho atrás de mim. Pobre da minha camiseta, tão clara e inutilizável depois do incidente.

Busquei a razão naquele momento tão inimaginável. Tentei entender se aquilo acontecia ali mesmo ou se não era apenas um de meus devaneios debruçados sobre o balcão. Mas era verdade mesmo. Tinha gente gritando o suficiente pra me tirar de qualquer leseira momentânea.

Um dos clientes desmaiou, outro vomitou e outro gritava tanto que em questão de segundos um punhado de gente acumulou na porta do bar. Foram minutos até surgir polícia e imprensa.

Em meros 45 minutos depois das 17hrs, eu tinha me tornado uma testemunha, que além de traumatizada seria obrigada a contar o que viu.

Um policial disse para mim no local:
- Vai ter que contar o que aconteceu, você viu tudo não?

Meio sem saber o que responder, tentei ser breve:
- Bom, ver eu vi, só não sei bem se o que vi é mesmo a verdade. Eu só a vi entrando e bum!

- Pois então, “entrou e bum.” Você vai dizer isto.
Achei meio ridículo. Uma mulher se mata e tudo o que tenho a dizer é “entrou e bum”. Talvez quem devesse se matar era eu, tamanha a precariedade do meu testemunho.

Qualquer outra pessoa daria mais detalhes. Eu não. Até porque, os jornais iriam registrar aquilo de maneira mais completa, mesmo sem terem estado lá. Então eu não ia ficar ali falando do que não sabia. Mas se me perguntassem dos olhos da mulher eu diria que eram belos. Mesmo sem ter visto. Afinal, os jornalistas também não vêem nada e no dia seguinte já contam uma super-história.

Os lápis anotam cada passo
Rabiscam sem saber que fim dar aos destinos
Mas é como um instinto

Se auto-apontam e depenam apontadores que ditam ordens
É a aristocracia da vida perdendo seu poder
Quantos lápis, tão jovens
Incansáveis

Suas histórias me assustam
Eu me assusto
Estou até meio surdo…


Depois da confusão e estouro que calou pensamentos mais fúteis, fechei o bar mais cedo e certamente pela última vez. Já não quero mais aquilo para mim. Foi a gota d’ água. Que aliás, pingou com tantas outras de sangue.

Como eu disse, depois das 17hrs tudo acontece na cidade de São Paulo.


GOTA III


- Só?

- Não, tem mais…

…Já em casa, deitei no sofá. A camiseta eu joguei fora no lixo do bar. Aliás, aquele lixo guardava tantas histórias. Vai guardar mais uma.

Apaguei as luzes e tentei relaxar. Porém a imagem de Cassandra tirando a própria vida deixou de ser tão simples quanto um “entrou e bum”. Agora ela mexe na minha mente, como se tivesse dado a vida para participar dos meus pensamentos.

Comecei a pensar no porque daquela morte tão prematura. Seria um descontrole emocional causado por TPM? Hum, acho que não, muito machismo pensar isto. Poderia então ser conseqüência de um belo pé na bunda? E porque bem ali no bar, na minha frente…

Castigada e maltratada
Baita puta novata que se ensangüentava
Castrou a vida por pouco, pois o muito sobrevive
Carimbou meus olhos, minha alma
Azul, agora vermelha
Pasta que voou, tão parva!

Ah, Cassandra teus olhos eu quero
E aquele rabo tão adestrado que eu já vi, muitos
Será agora um monte de musgos

Coxas, peitos e cabeça de galinha
Cassandra eu lhe pergunto,
Por quê?!

Fiquei meio intrigado com tudo aquilo. Onde estaria eu naquele momento, se não ali para presenciar a bendita suicida? Talvez no banheiro ou qualquer lugar mais longe do balcão do bar.

Entre pensamentos, traguei então um cigarro de “nada” para pensar com mais calma. Coloquei na boca o leve ar que em minhas mãos ganhavam peso e forma para ajudar no vício que eu tento adestrar. Depois tocou a campainha e era você.

- Quer dizer que você realmente não sabia quem era aquela mulher?
- Não, nunca a vi.
- E como sabe o nome dela?

…. ? … (mente caprichando na resposta)

- Ué, estava nos documentos dela, vocês que me disseram.
- É? Bom, então nos falamos depois Sr. Dante.
- Não precisa me chamar de senhor, apenas Dante está bom.
- Ok “Dante”, deixe o telefone por perto, devemos ligar em breve para o depoimento oficial na delegacia.

Enfim só, novamente deitado, jogado no sofá bege.

Fecho os olhos pra poder ver algo mais
Pressinto luzes
Sinais que se perdem junto ao som que foge
Chocalhos previnem a dor

Sinto isso, desvio
Procuro cenas que me comovam
Na verdade é pura ilusão
Uma realidade construída
É o fim do pavio
Doce escuridão


Com olhos fechados lembro de tanta coisa. Como em um livro antigo, folheio página por página, meio sem ler, mas conhecendo cada linha ali escrita.

Gostaria de afogar a saudades
Numa sopa
De letrinhas

Relembro minha vida. Paro num capítulo antigo, tento reler. Fala de uma mulher que me ajudou quando eu era mais novo, Cassandra. Foi a menina para quem eu escrevia bilhetinhos, dava um pedaço do lanche e depois ganhava um beijinho. Bons tempos.

Depois tudo mudou, eu mudei e ela nem sei onde foi parar. O destino inventou demais, mudava toda hora. E a coitada, de escola em escola. Talvez daí venha o vício de ir de bar em bar que adotou depois.

Sempre quis o imutável
Mudar o que era
Não mudar para eternizar
Mas pobre era este sonho
Deus não concederia algo assim!

Então,
BUM!

Marcou seu dia e isso não vai mudar
Na lápide estará o dia de hoje:
26 de abril.


Foge, foge Cassandra
Teu túmulo a quer por perto
Isto não foi certo,
Saiu do casulo para a vida senil
Pensou que era malandra?

Agora, aqui, deserto de ti. Registro nos altos o que sobrou de nós, tão pouco perto do muito que nos enlaçou um dia.

Sinto.

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